quarta-feira, 25 de junho de 2008

O novo poder

Sociólogo alemão diz que as ideologias acabarame que o Estado, a liberdade de mercado e as ONGs vão formar a nova ordem social


Publicada na Veja 08/04/98.

Professor da Universidade Humboldt, em Berlim, o sociólogo alemão Claus Offe, de 58 anos, é uma voz destoante entre os cientistas sociais. Acredita que a era das ideologias terminou, que a diminuição exagerada do Estado pode ser um risco para a democracia e que está em curso uma gigantesca reforma nas relações do cidadão com o governo. Ao lado do Estado e do mercado, entidades comunitárias como as ONGs e as igrejas vão formar uma nova ordem social. Na semana passada, Offe defendeu suas teses num seminário, em São Paulo, sobre a reforma do Estado. Foi aplaudidíssimo por uma platéia de sociólogos e economistas. Depois da palestra, jantou com o presidente Fernando Henrique Cardoso na casa do ministro Luiz Carlos Bresser Pereira. Casado, pai de duas filhas, Offe gosta de música clássica e de pescarias. "Mas infelizmente tenho pouco tempo para o lazer", lamenta. Depois de um roteiro que incluiu aulas na Austrália e no Chile e antes do retorno a Berlim, Offe deu a seguinte entrevista a VEJA:


Veja — Existe tamanho certo para o Estado?
Offe — A melhor resposta para essa pergunta é "não sei". Não há solução padrão para todos os países. Mas uma coisa é certa: as atribuições do Estado, o seu poder na vida cotidiana, não devem ser decididos por cientistas sociais, economistas ou burocratas do governo. Quem deve decidir isso são os cidadãos.


Veja — Mas existe então um tamanho errado para o Estado?
Offe — Sim, pode-se dizer que a experiência já demonstrou alternativas ruins. Veja o caso do Estado mínimo. Durante o governo da primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher, seus assessores econômicos afirmavam que a única opção de eficiência era a redução drástica do tamanho do Estado. Eles chegaram a criar uma sigla, Tina (Não Há Alternativa). Isso é um erro.


Veja — Por quê?
Offe — A diminuição do Estado pela diminuição do Estado é um dogma assim como a defesa cega do estatismo. Um Estado bom não é um Estado pequeno, mas aquele que atende com mais eficiência aos anseios dos cidadãos.


Veja — No Brasil, durante anos o governo foi responsável por atividades como a produção de vagões de trem, aviões, aço, petroquímicos e até gerenciou hotéis e fazendas. Quando o senhor ataca a redução do Estado, não está defendendo um Estado grandalhão?
Offe — De forma alguma. Há vários sintomas do mau funcionamento de um Estado gigante, como a demora em se renovar, a corrupção e a proteção dos interesses corporativos dos servidores públicos em detrimento dos contribuintes.


Veja — Países desenvolvidos resolveram a questão do tamanho do Estado de forma diferente. Nos Estados Unidos, o Estado não oferece amplo serviço de saúde, mas pode fiscalizar a atividade do setor privado. Na Dinamarca, como em outros países europeus, o Estado tem fortíssima atuação nos serviços sociais e ainda participa da economia. O que há de similar nessas duas experiências?
Offe — Não é a cultura que determina essas diferenças, mas a estrutura das suas instituições. Na situação excepcional do pós-guerra, os governos britânicos, tanto do Partido Trabalhista quanto do Conservador, reconstruíram o sistema de saúde. Isso gerou uma expectativa que passou de geração para geração sobre o papel do Estado. Os cidadãos saíam de casa sabendo que tinham onde se amparar caso acontecesse alguma coisa. Já nos Estados Unidos isso nunca ocorreu, porque as instituições são baseadas no federalismo, que torna quase impossível a existência de um sistema aceito por todos os Estados. Lá, a expectativa sempre se baseou em ter uma chance de alcançar o "sonho americano" através de direitos iguais e independência em relação ao governo central.


Veja — Mas o Estado do bem-estar social, no qual o governo oferece uma série de serviços sociais a seus cidadãos, ainda é viável?
Offe — O Estado do bem-estar social acabou. Nunca mais vai voltar. O que pode ocorrer é que um país garanta direitos a seus trabalhadores, como o seguro social e a educação, como forma de concorrer no mercado global. Em países como os da Escandinávia funciona assim: em vez de tentar produzir mão-de-obra barata, eles tentam ter trabalhadores com o máximo possível de especialização. Dessa forma, por mais que reclame do preço da mão-de-obra, uma companhia não tem como deixar o país porque não vai achar em outro lugar trabalhadores tão habilidosos. E essa capacidade só existe porque o Estado oferece condições adequadas de saúde e educação.


Veja — Na sua opinião, o Estado deve interferir na formação de mão-de-obra?
Offe — A idéia de que todas as pessoas devem ter emprego é algo muito recente na História, veio depois do movimento feminista. Mas hoje em dia não consigo imaginar nenhum país industrializado que tenha condições de ter pleno emprego por muito tempo. Os dois países que vivem essa situação são fruto de condições peculiares. A Holanda paga pensão para as mulheres só trabalharem meio período. Já os Estados Unidos reduziram as taxas de desemprego combatendo o crime, criando mais cargos de policiais, guardas penitenciários e seguranças particulares. Em nenhum outro lugar esses fenômenos se repetem.


Veja — Mas como a sociedade deve enfrentar o fato de que não há emprego para todos?
Offe — Os neotrabalhistas defendem o investimento na formação, como o exemplo que citei dos países escandinavos. Já os neoliberais acham que o importante é tornar o país mais competitivo, reduzir ao máximo os direitos sociais e acabar com o poder dos sindicatos. É uma revolução.


Veja — O senhor acha então que o neoliberalismo é um movimento revolucionário?
Offe — Sem dúvida. É uma corrente que tem base científica, formada na Universidade de Chicago, um desprezo enorme às instituições e regulamentações e pretende, assim como o comunismo planejou, formar um novo ser humano: um trabalhador rápido, eficiente e capaz de sobreviver num mundo competitivo. Por definição, o neoliberalismo quer um Estado que interfira quase nada na economia e, se possível, cobre pouco imposto.


Veja — Quais são as conseqüências de um Estado como esse?
Offe — Um Estado desses torna-se muito dependente dos investimentos privados e começa a fazer o que as empresas quiserem para não perder força econômica. Vira uma relação desigual, em que o mercado tem todas as fichas na mão. Em última instância, isso acaba afetando a confiança na democracia.


Veja — Como assim?
Offe — A democracia funciona bem apenas quando os cidadãos sentem que seu voto é útil, que ele decide os destinos de sua cidade ou país. Quando o governo é muito fraco, é normal as pessoas duvidarem da democracia. Elas se perguntam: para que serve a democracia se as decisões estão sendo tomadas em arenas em que o cidadão não tem influência? Por isso, o excesso de poder do mercado é ruim para a democracia. Na Austrália, por exemplo, uma empresa ganhou uma concessão para fazer uma rodovia na região de Melbourne. Em condições normais, em troca da concessão ela teria direito ao dinheiro arrecadado pelo pedágio. Só que ela recebeu, além disso, a garantia de que nos próximos trinta anos não será construído um metrô na região. As gerações futuras vão pagar pela satisfação do interesse de uma única empresa. É antidemocrático.


Veja — Mas as organizações supranacionais, como o Mercosul, também não têm uma participação direta da sociedade. Também não é antidemocrático que burocratas da União Européia decidam a receita da produção de queijo no interior na França?
Offe — Sim, com certeza essas organizações ainda têm um déficit de democracia. Na Europa, essa é uma das questões mais levantadas nas campanhas eleitorais tanto pelos partidos ditos de direita como pelos de esquerda.


Veja — O senhor acha que a crise nas bolsas de valores asiáticas é um exemplo desse excesso de poder do mercado? O senhor defende controles para a ação do mercado?
Offe — Em última instância, o controle sobre a ação do mercado é uma questão política que deve ser resolvida nas eleições de cada país. Mas é impossível saber como os países podem reagir a uma mudança brusca no mercado. Há uma interdependência muito grande entre os países nessas fugas de capitais que estão ocorrendo nas crises atuais. Por isso, a defesa de algum tipo de controle sobre as forças de mercado está crescendo em quase todos os países.


Veja — Na sua avaliação, o mundo continua balançando entre duas opções ideológicas?
Offe — De forma alguma. A era das ideologias acabou. Muitas pessoas em todo o mundo estão imaginando alternativas novas. No Brasil, por exemplo, há uma proposta muito interessante do senador Eduardo Suplicy. É o projeto da renda mínima, em que cada cidadão tem assegurado o direito constitucional de receber um mínimo para sobreviver.


Veja — Mas isso não cria uma dependência de milhares de pessoas sobre o Estado e, portanto, uma carga excessiva sobre os contribuintes?
Offe — Entendo que isso cria uma sensação de injustiça. Mas é isso que é pagamento de imposto num país democrático. Quem pode contribui para que a vida no país seja melhor. Muitas pessoas são contra um Estado grande não por motivos ideológicos, mas para pagar menos imposto. Mas feitas as contas essa é a preocupação de um grupo muito pequeno da sociedade.


Veja — Ninguém gosta de pagar imposto. Quem paga acha que o governo cobra demais. Quem sonega argumenta que o governo não faz o suficiente. Para quem, afinal, o Estado trabalha?
Offe — O grande problema na relação cidadão-governo é que, quando a pessoa compra uma camisa, ela sai com um produto na mão. Quando ela paga imposto não sabe para onde vai o dinheiro. Num governo ideal, o imposto seria destinado a assegurar a aposentadoria do pai desse consumidor ou ao financiamento de uma pesquisa científica. Mas, hoje em dia, mesmo os bons governos vivem com déficit nas suas contas e a cada ano mais imposto é usado para pagar juros e dívidas. Ou seja, fica cada vez mais difícil ver a relação entre imposto pago e serviço prestado.


Veja — O senhor disse que a era das ideologias terminou. Acha que o neoliberalismo tende a se enfraquecer como idéia e como prática?
Offe — De certa forma, sim. O neoliberalismo está perdendo a sua hegemonia intelectual. Discussões do Banco Mundial ou da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne alguns dos países mais ricos do mundo, têm repetidamente ressaltado a necessidade de se combater a pobreza.


Veja — Nas suas palestras, o senhor fala de um novo pacto social formado por Estado, mercado e comunidade. Como funciona essa tese?
Offe — Os problemas de um país não vão ser resolvidos apenas pela ação do Estado ou do mercado. É preciso um novo pacto, que ressalve o dever do Estado de dar condições básicas de cidadania, garanta a liberdade do mercado e da competição econômica e, para evitar o conflito entre esses dois interesses, permita a influência de entidades comunitárias. As organizações não governamentais, as igrejas, os movimentos profissionais como os Médicos sem Fronteira atuam como uma válvula de escape nas deficiências do Estado e do mercado. É a entidade de direitos civis que vai defender os interesses do cidadão junto à Justiça e ao Congresso. É a solidariedade de uma organização religiosa que vai ajudar muitos desempregados excluídos pelo mercado.


Veja — Por que o senhor confia tanto no poder das organizações comunitárias?
Offe — A família, os vizinhos, a comunidade em que cada um vive é a reserva moral da sociedade. É lá que o cidadão vai encontrar a solidariedade sem interesses. A origem histórica da ação política da comunidade vem das tradições da Igreja Católica, da visão liberal do filósofo francês Alexis de Tocqueville, que defendia a "arte cívica das organizações". É inegável o resultado positivo da ação comunitária. Nos últimos cinqüenta anos, o planeta mudou para melhor por causa dos movimentos pelos direitos civis, o feminismo, a luta pela preservação da natureza. Mas também há péssimos exemplos de ações comunitárias.


Veja — O senhor poderia dar exemplos?
Offe — O anti-semitismo na Alemanha nazista começou como uma ação comunitária para excluir os judeus da vida econômica e social do país. Hoje isso se repete nas ações contra os imigrantes africanos nos países ricos da Europa ou contra os latino-americanos nos Estados Unidos. As comunidades, por serem conduzidas por um grupo de interesses comuns, podem muito bem ser injustas, corporativas e egoístas. Por isso defendo um triângulo entre as três forças, sem a hegemonia de nenhum setor.

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