Publicado na FSP em 03/09/10
Expansão da economia brasileira cria classe de prósperos empreendedores sem medo de investir fora do país
Muitos dos novos ricos brasileiros são pessoas de origem mais rústica, seguindo um modelo familiar aos americanos
LARRY ROHTER
DO "NEW YORK TIMES"
A oferta de aquisição do Burger King apresentada ontem por um grupo de investimento de capital brasileiro, assim como a aquisição da Anheuser-Busch (há dois anos e envolvendo alguns dos mesmos investidores), é uma dessas transações emblemáticas que parecem simbolizar o surgimento de um novo protagonista nos negócios mundiais.
Mas isso era previsível já há um bom tempo. O crescimento da economia brasileira nos últimos anos criou toda uma classe de prósperos empreendedores em busca de oportunidades de investir suas fortunas e que não se deixam assustar pela ideia de tentar a sorte além das fronteiras brasileiras.
Tradicionalmente, os negócios brasileiros sempre foram dominados por uma elite muitas vezes cautelosa, radicada em São Paulo, o polo industrial e financeiro do país. Mas a disparada econômica dos dez últimos anos mudou o quadro.
Segundo o Boston Consulting Group, entre 2006 e 2008 o número de milionários brasileiros subiu em quase 70%, de 130 mil para 220 mil. É um dado estatístico notável.
Com cerca de um sexto da população da Índia, outro membro dos Brics, o Brasil abriga mais milionários que o país asiático. E o clube dos bilionários, ainda mais exclusivo, também vem crescendo em ritmo sem precedentes no Brasil.
Jorge Paulo Lehman, figura importante na aquisição da Anheuser-Bush e na oferta pelo Burger King, é um executivo de investimento bem preparado, educado em Harvard, filho de imigrantes suíços. Mas muitos dos novos ricos brasileiros são pessoas de origens mais rústicas e enriqueceram depois de começar a vida humildemente, seguindo um modelo bastante familiar aos americanos.
A companhia de aviação TAM, que em agosto anunciou fusão com a LAN Chile e se tornará a maior empresa do setor na América Latina, foi criada nos anos 70 como uma modesta empresa de carga aérea.
A força propulsora no caso da TAM foi Rolim Amaro, um antigo piloto de origem humilde e que comandou a empresa de maneira ousada e astuta até morrer em acidente de helicóptero em 2001.
FRIBOI
Mas talvez o mais intrigante e dinâmico dos novos empresários brasileiros seja Joesley Batista, que começou a trabalhar ainda menino no açougue do pai, em Goiás, e hoje comanda a JBS-Friboi, a maior empresa global de processamento de carne.
Quando o Brasil passou por uma crise cambial, em 1998 e no começo de 1999, Batista e seus irmãos entenderam o momento não como ameaça, e sim como oportunidade de ganhar o mercado de exportações, e obtiveram empréstimos no BNDES para colocar a ideia em prática.
Capital adicional foi levantado por uma oferta pública inicial de ações e, em 2007, a JBS-Friboi tomou o controle da Swift, outra marca americana conhecida. Em 2009, acrescentaram a Pilgrim's Pride à sua lista, e isso ajudou sua empresa a superar a Tyson Foods e chegar à liderança no mercado mundial de processamento de carne.
Além disso, o hoje bilionário Joesley Batista afirmou que superar a Tyson Foods era apenas "o primeiro passo" de uma estratégia mais ampla que envolve fazer da JBS-Friboi uma potência também no ramo de leite e laticínios. Com isso, como prever o que pode acontecer?
Uma coisa fica clara, no entanto: o domínio brasileiro sobre todas as etapas do setor mundial de carne. O país já é o maior exportador mundial de carne bovina e agora, com a oferta pelo Burger King, disporá de mais um veículo para encorajar o consumo em todo o mundo.
Isso é que é sinergia.
sábado, 18 de setembro de 2010
Brics serão gigantes de renda média
Publicado na FSP em 16/08/10
Economias de Brasil, Rússia, Índia e China alcançarão as do G7, mas diferença em PIB per capita permanecerá grande
Mudança no ranking de maiores economias terá importantes impactos geopolíticos, de acordo com especialistas
DE SÃO PAULO
Somadas, as economias dos Brics alcançarão as do G7 em 2032, e a distância entre os dois grupos crescerá em anos subsequentes. Mas a renda per capita média de Brasil, Rússia, Índia e China ainda será o equivalente a quase um terço da dos sete países industrializados em 22 anos.
Segundo projeções do Goldman Sachs, a renda per capita média dos Brics será US$ 21,57 mil em 2032, ante US$ 58,24 mil do G7 (EUA, Reino Unido, Japão, Itália, Alemanha, França e Canadá). Historicamente, essa será uma situação inédita.
A Rússia será o único Bric de renda alta, US$ 39,23 mil, ainda assim inferior à média do G7. China e Brasil (com cerca de US$ 20 mil de renda per capita) serão nações de renda média. E a Índia, com PIB (produto interno bruto) per capita de US$ 5.500, permanecerá pobre.
De acordo com economistas ouvidos pela Folha, essa nova configuração da ordem mundial terá impactos geopolíticos importantes que afetarão cada vez mais a agenda política e econômica global.
Os tópicos de discussão, resumidos abaixo, vão do futuro do G7 e do papel dos Brics nas instituições multilaterais à atratividade do modelo econômico chinês.
G7 versus G20
O chamado G20 (grupo que reúne países desenvolvidos e emergentes de grande peso econômico) provavelmente substituirá o G7 como principal fórum de debate e decisões políticas e econômicas.
"Acho que a vantagem do G20 é que é um grupo global que inclui mercados emergentes que crescem a ritmo rápido", diz Anoop Singh, diretor do departamento da Ásia do FMI.
Instituições multilaterais Para Singh, os emergentes terão peso crescente nas instituições multilaterais.
Mas, de acordo com Jim O'Neill, economista-chefe do Goldman Sachs, isso levará a um debate complexo: "Quem vai pagar pelo FMI? Serão as economias maiores, aquelas com mais reservas internacionais ou os mais ricos?".
Modelo chinês Segundo Arthur Carvalho, economista-chefe da Ativa Corretora, um tema que será muito debatido é a atratividade do modelo econômico chinês, de economia capitalista, aberta, mas com forte planejamento do governo.
Esse foi o tópico do debate da semana passada promovido pela "Economist" em seu site. A pergunta proposta pela revista britânica era se a China oferecia um modelo de desenvolvimento melhor que o do Ocidente. Até a sexta-feira passada, a maioria dos leitores respondeu que não (58% ante 42%).
Risco de conflito O economista Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper, diz não acreditar que se formará uma nova hegemonia política e econômica em torno da China, que, segundo projeções do Goldman Sachs, ultrapassará os EUA como maior economia do mundo em 2027.
Mas vê o risco de conflitos econômicos entre a China e outras grandes potências, à medida que o país asiático expandirá a ritmo cada vez mais rápido sua presença e sua influência em outras partes do mundo, principalmente nos países pobres e em desenvolvimento.
(ÉRICA FRAGA)
Economias de Brasil, Rússia, Índia e China alcançarão as do G7, mas diferença em PIB per capita permanecerá grande
Mudança no ranking de maiores economias terá importantes impactos geopolíticos, de acordo com especialistas
DE SÃO PAULO
Somadas, as economias dos Brics alcançarão as do G7 em 2032, e a distância entre os dois grupos crescerá em anos subsequentes. Mas a renda per capita média de Brasil, Rússia, Índia e China ainda será o equivalente a quase um terço da dos sete países industrializados em 22 anos.
Segundo projeções do Goldman Sachs, a renda per capita média dos Brics será US$ 21,57 mil em 2032, ante US$ 58,24 mil do G7 (EUA, Reino Unido, Japão, Itália, Alemanha, França e Canadá). Historicamente, essa será uma situação inédita.
A Rússia será o único Bric de renda alta, US$ 39,23 mil, ainda assim inferior à média do G7. China e Brasil (com cerca de US$ 20 mil de renda per capita) serão nações de renda média. E a Índia, com PIB (produto interno bruto) per capita de US$ 5.500, permanecerá pobre.
De acordo com economistas ouvidos pela Folha, essa nova configuração da ordem mundial terá impactos geopolíticos importantes que afetarão cada vez mais a agenda política e econômica global.
Os tópicos de discussão, resumidos abaixo, vão do futuro do G7 e do papel dos Brics nas instituições multilaterais à atratividade do modelo econômico chinês.
G7 versus G20
O chamado G20 (grupo que reúne países desenvolvidos e emergentes de grande peso econômico) provavelmente substituirá o G7 como principal fórum de debate e decisões políticas e econômicas.
"Acho que a vantagem do G20 é que é um grupo global que inclui mercados emergentes que crescem a ritmo rápido", diz Anoop Singh, diretor do departamento da Ásia do FMI.
Instituições multilaterais Para Singh, os emergentes terão peso crescente nas instituições multilaterais.
Mas, de acordo com Jim O'Neill, economista-chefe do Goldman Sachs, isso levará a um debate complexo: "Quem vai pagar pelo FMI? Serão as economias maiores, aquelas com mais reservas internacionais ou os mais ricos?".
Modelo chinês Segundo Arthur Carvalho, economista-chefe da Ativa Corretora, um tema que será muito debatido é a atratividade do modelo econômico chinês, de economia capitalista, aberta, mas com forte planejamento do governo.
Esse foi o tópico do debate da semana passada promovido pela "Economist" em seu site. A pergunta proposta pela revista britânica era se a China oferecia um modelo de desenvolvimento melhor que o do Ocidente. Até a sexta-feira passada, a maioria dos leitores respondeu que não (58% ante 42%).
Risco de conflito O economista Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper, diz não acreditar que se formará uma nova hegemonia política e econômica em torno da China, que, segundo projeções do Goldman Sachs, ultrapassará os EUA como maior economia do mundo em 2027.
Mas vê o risco de conflitos econômicos entre a China e outras grandes potências, à medida que o país asiático expandirá a ritmo cada vez mais rápido sua presença e sua influência em outras partes do mundo, principalmente nos países pobres e em desenvolvimento.
(ÉRICA FRAGA)
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
ME PEGO PENSANDO COMO
Por: Xico Sá
Como ela vem. Como está sendo o seu banho exatamente agora. Como ela ta cheirosa, mas que sue um tiquinho no camiño para dosar na conta, nossa! Como ela se olha no espelho na hora de se trocar. Como. Como ela fez o barulhinho do elástico da calcinha, pleft, a mais linda onomatopéias das moças. E nas vitrines da rua, como será aquela rápida mirada, extrato para simples conferência demasiadamente feminina. Como ela brigou com o cabelo hoje, porque em alguns dias os cabelos teimam em desobedecer às mulheres, sejam eles como forem. Como ela encarou o armário. Como enfiou a colher no papaia logo cedo antes de todas as acontecências. Como ela blasfemou contra o universo. Como ela disse “ai," ao teléfono, "mãe, num se preocupa, eu já estou grandinha”. Como os homens a olharam no percurso, que os homens do andaime não assobiem um “gostosa” hiperbólico, sob pena de ela se achar cheinha deveras, mas que assobiem alguma coisa, que não pequem por omissões – ah, não, são homens de verdade, não trabalham com elipses. Como ela deu aquela ajeitadinha nos peitos, agora já recuando para o começo das ações, o espelho. Como ela roçou um lábio no outro para corrigir o batom e dosar na maldade. Como ela decidiu por sandálias e não por sapatos ou tênis. Como ela pôs o rosto na janela para ouvir o homem do tempo. Como ela deu aquele saltinho na rua de moça feliz por hoje. Como ela achou que o celular tocava dentro da bolsa só porque eu pensava nela e não era nada pouco.
Como ela vem. Como está sendo o seu banho exatamente agora. Como ela ta cheirosa, mas que sue um tiquinho no camiño para dosar na conta, nossa! Como ela se olha no espelho na hora de se trocar. Como. Como ela fez o barulhinho do elástico da calcinha, pleft, a mais linda onomatopéias das moças. E nas vitrines da rua, como será aquela rápida mirada, extrato para simples conferência demasiadamente feminina. Como ela brigou com o cabelo hoje, porque em alguns dias os cabelos teimam em desobedecer às mulheres, sejam eles como forem. Como ela encarou o armário. Como enfiou a colher no papaia logo cedo antes de todas as acontecências. Como ela blasfemou contra o universo. Como ela disse “ai," ao teléfono, "mãe, num se preocupa, eu já estou grandinha”. Como os homens a olharam no percurso, que os homens do andaime não assobiem um “gostosa” hiperbólico, sob pena de ela se achar cheinha deveras, mas que assobiem alguma coisa, que não pequem por omissões – ah, não, são homens de verdade, não trabalham com elipses. Como ela deu aquela ajeitadinha nos peitos, agora já recuando para o começo das ações, o espelho. Como ela roçou um lábio no outro para corrigir o batom e dosar na maldade. Como ela decidiu por sandálias e não por sapatos ou tênis. Como ela pôs o rosto na janela para ouvir o homem do tempo. Como ela deu aquele saltinho na rua de moça feliz por hoje. Como ela achou que o celular tocava dentro da bolsa só porque eu pensava nela e não era nada pouco.
sábado, 15 de novembro de 2008
A campanha pela volta do cafuné continua
Por Xico Sá
Dos dengos femininos, ou historicamente femininos, o que mais nos faz falta, é o cafuné.
Nos dias avexados de hoje, não há mais tempo nem devoção para os delicados estalinhos no cocoruto do mancebo.
Pela volta imediata do mais nobre dos gestos de carinho e delicadeza. Nem que seja pago, como o sexo das belas raparigas dos lupanares, mas que devolvam vossas mãos às nossas cabeças.
Pela criação imediata da Casa de Cafunés Gilberto Freyre, como me propõe, em sociedade, a amiga Maria Eduarda Risoflora Belém. Ótima idéia a ser espalhada por todo o país. Milhares de casas, guichês, varandas, redes debaixo de coqueiros, sofás na rua... Tudo a serviço dos breves e deliciosos estalinhos dos dedos das moças.
Gilberto Freyre era um entusiasta do cafuné e a ele dedicou páginas e páginas. GF, aliás, escrevia como quem dá cafuné, prosa mole, ritmo dos mais sensoriais. Como também assenta palavras outro Freire, sem o estilingue do Y, o Marcelino de “Contos Negreiros”.
Que machos & fêmeas sejam treinados, em um programa social de emergência, para reaprenderem o hábito do cafuné.
Melhor: que seja feita uma campanha de saúde pública. Ah, quantas doenças de fundo nervoso seriam evitadas, quantos barracos de casais seriam esquecidos, quantos juízos agoniados seriam libertos!
Sem se falar no erotismo que desperta o dengo, como anotou outro sociólogo, o francês Roger Bastide, no seu belo ensaio “Psicanálise do Cafuné”. Pura libido.
Delícia de se sentir; beleza de se ver. O cafuné de uma mulher em outra, ave palavra!, puro cinema, para além muito além do lesbian chic.
Como era comum, na leseira de fim de tarde, nos quintais e nas calçadas.
Ao luar, então, sertões e agrestes adentro, era puro filme de Kurosawa. O resto era silêncio.
Ai que preguiça boa danada, ai que arrepio no cangote, quero de volta meus cafunés.
Viver de brisa, como na receita de Bandeira, numa rede na rua da Aurora, sob a graça dos dedos de uma morena jambo ou de uma morena caldo-de-feijão.
Como pode uma criatura, como esses rapazes de hoje, passarem pela vida sem provar do êxtase de um cafuné?
Pela obrigatoriedade do cafuné nos recreios escolares, nas missas, nos cultos, nos intervalos dos jogos de qualquer esporte.
Não é possível que se condene toda uma geração a viver sem cafuné. Eis uma questão de segurança nacional. Tão importante como aprender a assinar o próprio nome. O cafuné, aliás, é a assinatura em linda e barroca caligrafia de mulher.
Dos dengos femininos, ou historicamente femininos, o que mais nos faz falta, é o cafuné.
Nos dias avexados de hoje, não há mais tempo nem devoção para os delicados estalinhos no cocoruto do mancebo.
Pela volta imediata do mais nobre dos gestos de carinho e delicadeza. Nem que seja pago, como o sexo das belas raparigas dos lupanares, mas que devolvam vossas mãos às nossas cabeças.
Pela criação imediata da Casa de Cafunés Gilberto Freyre, como me propõe, em sociedade, a amiga Maria Eduarda Risoflora Belém. Ótima idéia a ser espalhada por todo o país. Milhares de casas, guichês, varandas, redes debaixo de coqueiros, sofás na rua... Tudo a serviço dos breves e deliciosos estalinhos dos dedos das moças.
Gilberto Freyre era um entusiasta do cafuné e a ele dedicou páginas e páginas. GF, aliás, escrevia como quem dá cafuné, prosa mole, ritmo dos mais sensoriais. Como também assenta palavras outro Freire, sem o estilingue do Y, o Marcelino de “Contos Negreiros”.
Que machos & fêmeas sejam treinados, em um programa social de emergência, para reaprenderem o hábito do cafuné.
Melhor: que seja feita uma campanha de saúde pública. Ah, quantas doenças de fundo nervoso seriam evitadas, quantos barracos de casais seriam esquecidos, quantos juízos agoniados seriam libertos!
Sem se falar no erotismo que desperta o dengo, como anotou outro sociólogo, o francês Roger Bastide, no seu belo ensaio “Psicanálise do Cafuné”. Pura libido.
Delícia de se sentir; beleza de se ver. O cafuné de uma mulher em outra, ave palavra!, puro cinema, para além muito além do lesbian chic.
Como era comum, na leseira de fim de tarde, nos quintais e nas calçadas.
Ao luar, então, sertões e agrestes adentro, era puro filme de Kurosawa. O resto era silêncio.
Ai que preguiça boa danada, ai que arrepio no cangote, quero de volta meus cafunés.
Viver de brisa, como na receita de Bandeira, numa rede na rua da Aurora, sob a graça dos dedos de uma morena jambo ou de uma morena caldo-de-feijão.
Como pode uma criatura, como esses rapazes de hoje, passarem pela vida sem provar do êxtase de um cafuné?
Pela obrigatoriedade do cafuné nos recreios escolares, nas missas, nos cultos, nos intervalos dos jogos de qualquer esporte.
Não é possível que se condene toda uma geração a viver sem cafuné. Eis uma questão de segurança nacional. Tão importante como aprender a assinar o próprio nome. O cafuné, aliás, é a assinatura em linda e barroca caligrafia de mulher.
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
DA ESPIONAGEM AMOROSA & OUTRAS INVASÕES BÁRBARAS
Crônica publicada em 10/11/08 no Carapuceiro
Por: Xico Sá
A amiga M. conta que, mais uma vez, caiu na tentação de fazer uma rápida espionagem no telefone do mancebo.
Quem manda!
Quem procura, acha, como grita o adágio popular mais óbvio.
Aproveitou o banho do condenado para ver, pelo menos, as últimas mensagens de texto.
Maldita caixa de entrada.
Claro que encontrou merda, com licença da palavra, mas foi essa a descarga de inevitável léxico –que outro vocábulo poderia usar nesta fatídica hora?- a preferida para o desabafo a este cronista e conselheiro das moças.
Encurralado, o miserável já havia dito que ficara com outra donzela.
Nada demais, só uns beijos, disse o réu confesso diante das provas incontestáveis. Hoje uma fotinha digital, enviada anonimamente por e-mail, vale por mil cartas anônimas de antigamente.
O infeliz das costas ocas, o lazarento, o febre-do-rato, o cabra safado –aqui reproduzo fielmente o rosário de adjetivos usado por minha amiga traída- aproveitou um desses carnavais fora de época para a famosa prática do pulo à cerca, o mais olímpico e familiar dos esportes brasileiros.
Um homem picareta e uma folia de micareta, definitavamente, não rimam com fidelidade e amor.
A amiga M., porém, já sabia com quem lidava, idiota quem acha que é tarefa fácil engambelar uma fêmea. Não que o moço fosse de tudo um canalha legítimo, era apenas um homem, ainda um amador nessa arte.
O que incomodou mesmo a colega foi a falta de criatividade do desalmado. O filho de uma rapariga havia escrito para a nova presa a mesmíssima coisa que rabiscara mal e porcamente na mensagem com destino à doce M.
Tudo bem, não era nada genial, mas uma frase comovida, dizendo quão bela fora a primeira noite dos dois juntos. Sim, porque é ridículo que um macho e uma fêmea, chabadabadá, como diz a trilha daquele famoso filme de Claude Lelouch (“Um homem, uma mulher, 20 anos depois”, em todas as locadoras do ramo), se locupletem na cama e o silêncio torne irrespirável o dia seguinte.
É preciso, é necessário, e deveria constar da Declaração dos Direitos Universais do Homem, que se diga pelo menos uma coisinha, um agrado, SMS, um mimo, ainda sob o sol que se levanta muito antes dos dois. Não estamos falando em casamentos ou outros laços duradouros, amigo, é questão de educação e delicadeza, simplesmente um carinho depois de tanta intimidade.
O que chateou a amiga, de modo a doer-lhe no fígado, foi que o mal-assombro dela usou as mesmas palavras que mandou para a “vagabunda”.
Claro que o ciúme não é apenas do plágio, da cópia automática, mas isso prova como os homens, além de frouxos para encarar os romances, andam sem a menor criatividade. Gente que gasta a maior lábia para os negócios e os projetos culturais –caso do mancebo sob o tiro ao alvo desta crônica- é incapaz de variar em duas linhas para uma mulher honesta, digo, para uma mulher que presta!
Por: Xico Sá
A amiga M. conta que, mais uma vez, caiu na tentação de fazer uma rápida espionagem no telefone do mancebo.
Quem manda!
Quem procura, acha, como grita o adágio popular mais óbvio.
Aproveitou o banho do condenado para ver, pelo menos, as últimas mensagens de texto.
Maldita caixa de entrada.
Claro que encontrou merda, com licença da palavra, mas foi essa a descarga de inevitável léxico –que outro vocábulo poderia usar nesta fatídica hora?- a preferida para o desabafo a este cronista e conselheiro das moças.
Encurralado, o miserável já havia dito que ficara com outra donzela.
Nada demais, só uns beijos, disse o réu confesso diante das provas incontestáveis. Hoje uma fotinha digital, enviada anonimamente por e-mail, vale por mil cartas anônimas de antigamente.
O infeliz das costas ocas, o lazarento, o febre-do-rato, o cabra safado –aqui reproduzo fielmente o rosário de adjetivos usado por minha amiga traída- aproveitou um desses carnavais fora de época para a famosa prática do pulo à cerca, o mais olímpico e familiar dos esportes brasileiros.
Um homem picareta e uma folia de micareta, definitavamente, não rimam com fidelidade e amor.
A amiga M., porém, já sabia com quem lidava, idiota quem acha que é tarefa fácil engambelar uma fêmea. Não que o moço fosse de tudo um canalha legítimo, era apenas um homem, ainda um amador nessa arte.
O que incomodou mesmo a colega foi a falta de criatividade do desalmado. O filho de uma rapariga havia escrito para a nova presa a mesmíssima coisa que rabiscara mal e porcamente na mensagem com destino à doce M.
Tudo bem, não era nada genial, mas uma frase comovida, dizendo quão bela fora a primeira noite dos dois juntos. Sim, porque é ridículo que um macho e uma fêmea, chabadabadá, como diz a trilha daquele famoso filme de Claude Lelouch (“Um homem, uma mulher, 20 anos depois”, em todas as locadoras do ramo), se locupletem na cama e o silêncio torne irrespirável o dia seguinte.
É preciso, é necessário, e deveria constar da Declaração dos Direitos Universais do Homem, que se diga pelo menos uma coisinha, um agrado, SMS, um mimo, ainda sob o sol que se levanta muito antes dos dois. Não estamos falando em casamentos ou outros laços duradouros, amigo, é questão de educação e delicadeza, simplesmente um carinho depois de tanta intimidade.
O que chateou a amiga, de modo a doer-lhe no fígado, foi que o mal-assombro dela usou as mesmas palavras que mandou para a “vagabunda”.
Claro que o ciúme não é apenas do plágio, da cópia automática, mas isso prova como os homens, além de frouxos para encarar os romances, andam sem a menor criatividade. Gente que gasta a maior lábia para os negócios e os projetos culturais –caso do mancebo sob o tiro ao alvo desta crônica- é incapaz de variar em duas linhas para uma mulher honesta, digo, para uma mulher que presta!
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
terça-feira, 4 de novembro de 2008
A hora de dizer "eu te amo"
DO AMOR E DOS SEUS PRONUNCIAMENTOS
Por Xico Sá
Amigo, se você é do tipo que diz “eu te amo” de uma forma, digamos assim, precoce e irresponsável, na afoiteza das primeiras e belas noites na alcova, como já tanto o fez este pusilânime cronista, prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar, digo, “se liga”, como verbalizam os avexados mancebos da hora.
Se a gazela for safa,sábia, mal algum há em tal pronúncia, até apreciará o empolgante anúncio como uma poesia de fundo, como se uma música de Sérge Gainsbourg –Je t'aime moi non plus- estivesse tocando no quarto de motel barato àquela altura.
Pensará a moça, bem baixinho, “que doce vagabundo”. Terá sido apenas um pequeno crime, como num bolero, um “besame mucho”, um cha-cha-cha num Caribe imaginário, cortinas ao vento, lua caliente lá fora, barulho de caminhões no asfalto.
Sim, a gazela pode entender como um “eu te amo mesmo, de verdade, verdadeira, assim como Deus sobre todas as coisas”.
Que mal há nisso?
Quantos amores à vera começaram com um “eu te amo” de brincadeira?
Nesses tempos de amores líquidos, de amores ficantes, de amores-vinhetas de 15 segundos, quem saberá o que venha a ser o amor patenteado pelos deuses incas ou gregos?!
O melhor mesmo é dizer, sem medo, eu te amo, e honrá-lo pelo menos enquanto o sublime eco resistir entre aquelas abençoadas quatro paredes.
E se ela acreditar, ora, ora, manda um “eu te amo, meeeesssmmmoooo”.
Com olhinhos revirados, vamos mais fundo ainda: “Eu te amo até o fim dos tempos”.
Se ela não tá nem aí, você se vira para o piano e ordena, como no filme Casablanca, mesmo que estejam atravessando a avenida Afonso Penna em Belo Horizonte, seis horas da tarde, buzinaço, hora do ângelus: “play, again, Sam!”
E manda mais “eu te amo”, como um estribilho do vento, nas oiças da desalmada, até ela acostumar com a natureza humana do macho que veio ao mundo com um cowboy solitário que tem apenas um mantra, uma bala no coldre dos sentimentos: “eu te amo”.
Monocórdico sr. das sombras cujo cardiograma é um terremoto de “eu te amos”, como um sismógrafo nervoso a riscar o mostrador da maquininha que mede os tremores demasiadamente humanos de todos os cardiologistas particulares.
Antes um “serial lover” a dizer eu te amo como um cuco desembestado a um elíptico e silencioso cabra safado que guarda os “eu te amo” para a hora do chifre ou para a extrema-unção, como meu amigo “mucho macho” que morreu balbuciando, câmera lenta, para o padre Cristiano, lá em Santana do Cariri, muito tempo atrás: “padre, me perdoa, estou morrendo, creio, e nunca disse eu te amo!”. Donde a dúbia e indecifrável sentença guarda dúvida até hoje: “para quem seria aquele guardadíssimo eu te amo?”. Para o padre ou para o seu amor proibido?
Donde baixa um Esopo fabulador para deixar a moral da crônica: mais vale um “eu te amo” que entre por um ouvido e saia pelo outro do que um silêncio mortal de um homem que nunca se empolga e deixa a gazela achando que “eu te amo” é coisa só de novela e de filme americano.
Por Xico Sá
Amigo, se você é do tipo que diz “eu te amo” de uma forma, digamos assim, precoce e irresponsável, na afoiteza das primeiras e belas noites na alcova, como já tanto o fez este pusilânime cronista, prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar, digo, “se liga”, como verbalizam os avexados mancebos da hora.
Se a gazela for safa,sábia, mal algum há em tal pronúncia, até apreciará o empolgante anúncio como uma poesia de fundo, como se uma música de Sérge Gainsbourg –Je t'aime moi non plus- estivesse tocando no quarto de motel barato àquela altura.
Pensará a moça, bem baixinho, “que doce vagabundo”. Terá sido apenas um pequeno crime, como num bolero, um “besame mucho”, um cha-cha-cha num Caribe imaginário, cortinas ao vento, lua caliente lá fora, barulho de caminhões no asfalto.
Sim, a gazela pode entender como um “eu te amo mesmo, de verdade, verdadeira, assim como Deus sobre todas as coisas”.
Que mal há nisso?
Quantos amores à vera começaram com um “eu te amo” de brincadeira?
Nesses tempos de amores líquidos, de amores ficantes, de amores-vinhetas de 15 segundos, quem saberá o que venha a ser o amor patenteado pelos deuses incas ou gregos?!
O melhor mesmo é dizer, sem medo, eu te amo, e honrá-lo pelo menos enquanto o sublime eco resistir entre aquelas abençoadas quatro paredes.
E se ela acreditar, ora, ora, manda um “eu te amo, meeeesssmmmoooo”.
Com olhinhos revirados, vamos mais fundo ainda: “Eu te amo até o fim dos tempos”.
Se ela não tá nem aí, você se vira para o piano e ordena, como no filme Casablanca, mesmo que estejam atravessando a avenida Afonso Penna em Belo Horizonte, seis horas da tarde, buzinaço, hora do ângelus: “play, again, Sam!”
E manda mais “eu te amo”, como um estribilho do vento, nas oiças da desalmada, até ela acostumar com a natureza humana do macho que veio ao mundo com um cowboy solitário que tem apenas um mantra, uma bala no coldre dos sentimentos: “eu te amo”.
Monocórdico sr. das sombras cujo cardiograma é um terremoto de “eu te amos”, como um sismógrafo nervoso a riscar o mostrador da maquininha que mede os tremores demasiadamente humanos de todos os cardiologistas particulares.
Antes um “serial lover” a dizer eu te amo como um cuco desembestado a um elíptico e silencioso cabra safado que guarda os “eu te amo” para a hora do chifre ou para a extrema-unção, como meu amigo “mucho macho” que morreu balbuciando, câmera lenta, para o padre Cristiano, lá em Santana do Cariri, muito tempo atrás: “padre, me perdoa, estou morrendo, creio, e nunca disse eu te amo!”. Donde a dúbia e indecifrável sentença guarda dúvida até hoje: “para quem seria aquele guardadíssimo eu te amo?”. Para o padre ou para o seu amor proibido?
Donde baixa um Esopo fabulador para deixar a moral da crônica: mais vale um “eu te amo” que entre por um ouvido e saia pelo outro do que um silêncio mortal de um homem que nunca se empolga e deixa a gazela achando que “eu te amo” é coisa só de novela e de filme americano.
sábado, 25 de outubro de 2008
Antes da inauguração, Bienal sofre ataques de "coladores" de "stickers"
Publicado na FSP - 25/10/08
Por: SARA UHELSKI
DA FOLHA ONLINE
O grupoArac, que se define como "um grupo independente de "coladores" de "stickers" [adesivos]", passou quatro horas anteontem no segundo andar do pavilhão da Bienal -que, por decisão da curadoria, foi deixado vazio nesta edição da mostra- fazendo intervenções nas paredes e nos pilares.
Os adesivos foram agrupados em quatro ou cinco e colados em 15 pontos do andar. São caveiras, borboletas e dentaduras, entre outros desenhos, que ficarão camuflados -eles ficarão escondidos sob folhas brancas e tinta até a abertura da mostra, que acontece hoje para convidados e amanhã para o público.
A ação está registrada no blog Bien-Mal 2008, que mostra fotos do procedimento e adianta alguma das imagens coladas.
Em conversa com a Folha Online, o organizador da intervenção, que não quis se identificar, afirmou que não considera o ato uma forma de vandalismo. "Considero uma obra de arte, uma conseqüência à proposta dos curadores de manter o segundo andar vazio."
Em entrevista coletiva realizada anteontem, a Fundação Bienal de São Paulo disse ter preparado um esquema antivandalismo.
"Acho ainda que os responsáveis pela Bienal vão entender e deixar os adesivos onde eles estão", completou o organizador da intervenção. Ele afirma ainda que o fato de a Bienal ser um evento gratuito e sem barreiras na entrada a caracteriza como um espaço urbano, que deve receber também expressões de arte urbanas.
Para continuar com a intervenção e incentivar outras pessoas a irem até a Bienal colar seus "stickers", o grupoArac criou o "Manual para a Invasão da Bienal".
"Sticker"
O "sticker" é um tipo de intervenção urbana, como o grafite, que ganhou as ruas de São Paulo, especialmente a região da rua Augusta, há cerca de quatro anos.
Feito de papel adesivo ou comum, os "stickers" trazem desenhos de seus autores e estão espalhados por outras metrópoles.
Por: SARA UHELSKI
DA FOLHA ONLINE
O grupoArac, que se define como "um grupo independente de "coladores" de "stickers" [adesivos]", passou quatro horas anteontem no segundo andar do pavilhão da Bienal -que, por decisão da curadoria, foi deixado vazio nesta edição da mostra- fazendo intervenções nas paredes e nos pilares.
Os adesivos foram agrupados em quatro ou cinco e colados em 15 pontos do andar. São caveiras, borboletas e dentaduras, entre outros desenhos, que ficarão camuflados -eles ficarão escondidos sob folhas brancas e tinta até a abertura da mostra, que acontece hoje para convidados e amanhã para o público.
A ação está registrada no blog Bien-Mal 2008, que mostra fotos do procedimento e adianta alguma das imagens coladas.
Em conversa com a Folha Online, o organizador da intervenção, que não quis se identificar, afirmou que não considera o ato uma forma de vandalismo. "Considero uma obra de arte, uma conseqüência à proposta dos curadores de manter o segundo andar vazio."
Em entrevista coletiva realizada anteontem, a Fundação Bienal de São Paulo disse ter preparado um esquema antivandalismo.
"Acho ainda que os responsáveis pela Bienal vão entender e deixar os adesivos onde eles estão", completou o organizador da intervenção. Ele afirma ainda que o fato de a Bienal ser um evento gratuito e sem barreiras na entrada a caracteriza como um espaço urbano, que deve receber também expressões de arte urbanas.
Para continuar com a intervenção e incentivar outras pessoas a irem até a Bienal colar seus "stickers", o grupoArac criou o "Manual para a Invasão da Bienal".
"Sticker"
O "sticker" é um tipo de intervenção urbana, como o grafite, que ganhou as ruas de São Paulo, especialmente a região da rua Augusta, há cerca de quatro anos.
Feito de papel adesivo ou comum, os "stickers" trazem desenhos de seus autores e estão espalhados por outras metrópoles.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
"Ensaio sobre a Cegueira"
Por : Contardo Calligaris
Publicado na Folha em 18/09/08
Gosto dos romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo "verdadeiro". Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.
ccalligari@uol.com.br
Publicado na Folha em 18/09/08
Gosto dos romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo "verdadeiro". Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.
ccalligari@uol.com.br
"Ensaio sobre a Cegueira"
Gosto dos romances e dos filmes apocalípticos, ou seja, das histórias em que algum tipo de fim do mundo (guerra nuclear, invasão extraterrestre, epidemia etc.) nos força a encarar uma versão laica e íntima do Juízo Final. Nessa versão, Deus não avalia nosso passado, mas, enquanto o mundo desaba, nosso desempenho mostra quem somos realmente. No desamparo, quando o tecido social se esfarela e as normas perdem força e valor, conhecemos, enfim, nosso estofo "verdadeiro". Somos capazes do melhor ou do pior: o apocalipse nos testa e nos revela.
O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.
No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.
A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.
Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.
Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"
No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.
São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).
Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.
ccalligari@uol.com.br
O primeiro romance apocalíptico (de 1826) talvez tenha sido "O Último Homem" (ed. Landmark), de Mary Shelley, que é também a autora de "Frankenstein". De fato, as duas obras são animadas pelo mesmo sonho: uma criatura radicalmente nova pode ser fabricada no bricabraque de um necrotério ou nascer das cinzas da civilização. Em ambos os casos, ela será sem história, sem ascendência, sem comunidade e, portanto, penosamente livre - para o bem ou para o mal.
No romance de Mary Shelley, aliás, a causa da catástrofe é uma epidemia, como na "Peste", de Camus, e como no "Ensaio sobre a Cegueira", de Saramago, que é agora levado para o cinema por Fernando Meirelles.
A obra de Meirelles é fiel ao livro que a inspira, mas, para contar a mesma história, consegue inventar uma eloqüência própria, sutil e forte. Por exemplo, o filme banha numa luz esbranquiçada e difusa que não é apenas (como foi dito e repetido) uma evocação da cegueira branca que aflige a humanidade: é a atmosfera ordinária de nosso universo desbotado, em que a trivialidade do cotidiano desvanece os contrastes - até que as sombras e os brilhos sejam revelados na "hora do vamos ver", que acontece, paradoxalmente, porque todos (ou quase todos) perdem a visão.
Depois de assistir ao filme, li algumas das críticas que ele recebeu em Cannes. A nota de Manohla Dargis, no "New York Times" de 16 de maio, por exemplo, é paradoxal: Dargis acusa o filme de ser uma Alegoria com "A" maiúscula, em que, aos personagens, faltaria espessura. Certo, os personagens de "Ensaio sobre a Cegueira" quase não têm história prévia, assim como a cidade em que os fatos acontecem (uma mistura de São Paulo com Toronto) é uma cidade moderna qualquer, cujas particularidades não contam. Essa, justamente, é a beleza do gênero: o surgimento quase abstrato de uma situação extrema, em que se trata de escolher e agir a partir de nada. O passado, o lugar não contam: os personagens são definidos por suas escolhas aqui e agora.
Dargis também se queixa da oposição que lhe parece excessiva, no filme, entre "os bons" e "os ruins", ou seja, entre os que, na cegueira, descobrem e aprimoram sua humanidade e os que a perdem. É uma queixa curiosa, pois, em quase todas as narrativas apocalípticas, a contraposição de retidão e bestialidade é o sinal de uma liberdade quase absoluta, angustiante: o fim do mundo é um bívio sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança. A oposição caricata dos bons e dos ruins expressa a incerteza do espectador, do leitor e do autor: "Você, se, por uma misteriosa epidemia, o mundo ficar cego, se o reino da lei acabar e começar a idade da luta pela sobrevivência, de que lado estará? Do lado dos que inventarão novas formas de abusos ou dos que descobrirão novas formas de respeito e de vida comum? Uma vez perdida a visão, o que você enxergará no seu vizinho: mais uma mulher para estuprar e um otário para explorar ou um irmão, perdido que nem você?"
No "Ensaio sobre a Cegueira" (de Meirelles e de Saramago), diferente do que acontece em muitas narrativas apocalípticas, a heroína é uma mulher, e as mulheres são as depositárias da esperança; elas saem engrandecidas pelas provas da situação extrema.
São elas que, para o bem de todos, entregam-se aos estupradores, aviltando não elas mesmas mas os que as violentam, com uma coragem que salienta a covardia dos maridos ciumentos ou zelosos de sua "honra". São elas que sabem cuidar de uma criança ou matar quando é preciso. São elas que reinventam a amizade (em cenas memoráveis: a das mulheres lavando o corpo da companheira espancada à morte e a das mulheres no chuveiro).
Aviso, caso, um dia, a gente tenha que recomeçar tudo do zero: em geral, as mulheres sabem, melhor do que os homens, o que é essencial na vida.
ccalligari@uol.com.br
quarta-feira, 1 de outubro de 2008
Encontro com Saramago em cinema de Lisboa
Publicado na Folha em 21/05/08
Por: FERNANDO MEIRELLES
Depois de uma semana que pareceu uma verdadeira montanha russa emocional, saí de Cannes no sábado e fui para Lisboa mostrar o filme "Ensaio sobre a Cegueira" para o autor da história, José Saramago. Por meses, antecipei o quanto a sessão me deixaria ansioso -e não estava errado. Infelizmente, o cine São Jorge, que nos foi reservado, não tinha projeção digital, então foi improvisado um sistema para passarmos nossa fita. Pensei em desistir de mostrar o filme ao ver um teste da projeção, mas o escritor já estava na sala de espera e, em respeito ao compromisso, achei melhor ir em frente. Sentei-me ao seu lado, expliquei aos poucos amigos presentes que só havia legendas em francês e começamos a ver o filme. Sofri cada vez que uma imagem não aparecia ou que uma música mal soava. Ele assistiu ao filme todo mudo e sem reação nenhuma. Ao final da sessão, quando os créditos começaram a subir, sua mulher, Pilar, debruçou-se sobre Saramago e me agradeceu, emocionada. Silêncio ao meu lado. Antes de terminar os créditos principais, as luzes do cinema foram acesas, eu ousei olhar para o lado e vi que ele fitava a tela sem reação, como se estivesse interessado no nome dos assistentes de cenografia que passavam. Deu tudo errado, pensei. Toquei seu braço levemente e lhe falei que ele não precisava comentar nada naquele momento, mas, então, com uma voz embargada, ele me disse, pausadamente: "Fernando, eu me sinto tão feliz hoje, ao terminar de ver este filme, como quando acabei de escrever "O Ensaio sobre a Cegueira'". Apenas agradeci e ficamos ali quietos. Dois marmanjos segurando as próprias lágrimas em silêncio. Ele passou a mão nos olhos, disfarçando a sua. Pensei no meu pai. Emoção sólida, dessas que se pode cortar em fatias com uma faca. Num impulso, beijei sua testa. Na conversa e no jantar que se seguiram, ele disse que não considera o filme um espelho de seu trabalho e que nem poderia ser assim, pois cada pessoa tem uma sensibilidade diferente. Disse ter gostado da experiência de ver algo que conhecia, mas que, ao mesmo tempo, não conhecia. Falou que o filme não era perfeito, mas que nunca havia assistido a um filme perfeito. Comentou algumas imagens que o emocionaram especialmente e disse ter achado o nosso Cão das Lágrimas muito doce; preferia que fosse mais agressivo. CríticasQuando lhe contei sobre as críticas favoráveis e contrárias ao filme em Cannes, incluindo a da Folha, ele imediatamente lembrou e recontou aquela historinha do velho que vem puxando um burro montado por uma criança. Um passante vê aquilo e acha absurdo a criança estar montada enquanto um velho caminha, então eles invertem a posição. Outro passante cruza com o grupo e reclama da situação: "Como um adulto deixa uma criança a pé enquanto vai confortavelmente montado?". Então, os dois montam no burro, mas alguém acha aquilo uma crueldade com um animal tão pequeno. Finalmente, resolvem ambos carregar o burro nas costas, até que outro passante observa como são estúpidos por carregar o animal. E, enfim, o velho decide voltar para a primeira situação e parar de dar importância ao que dizem. "É isso que faço sempre", concluiu o escritor. Acabo de deixar José Saramago e sua mulher no Ministério da Cultura de Portugal, onde está sendo exibida uma retrospectiva de seu trabalho e sua vida. Houve uma pequena coletiva de imprensa ali, depois de visitarmos juntos a exposição. Meu filminho de menos de duas horas me pareceu muito insignificante ao ser colocado ao lado daquela obra de uma vida inteira.
FERNANDO MEIRELLES é o diretor de "Ensaio sobre a Cegueira", "Cidade de Deus" (2002) e "O Jardineiro Fiel" (2005), entre outros
Por: FERNANDO MEIRELLES
Depois de uma semana que pareceu uma verdadeira montanha russa emocional, saí de Cannes no sábado e fui para Lisboa mostrar o filme "Ensaio sobre a Cegueira" para o autor da história, José Saramago. Por meses, antecipei o quanto a sessão me deixaria ansioso -e não estava errado. Infelizmente, o cine São Jorge, que nos foi reservado, não tinha projeção digital, então foi improvisado um sistema para passarmos nossa fita. Pensei em desistir de mostrar o filme ao ver um teste da projeção, mas o escritor já estava na sala de espera e, em respeito ao compromisso, achei melhor ir em frente. Sentei-me ao seu lado, expliquei aos poucos amigos presentes que só havia legendas em francês e começamos a ver o filme. Sofri cada vez que uma imagem não aparecia ou que uma música mal soava. Ele assistiu ao filme todo mudo e sem reação nenhuma. Ao final da sessão, quando os créditos começaram a subir, sua mulher, Pilar, debruçou-se sobre Saramago e me agradeceu, emocionada. Silêncio ao meu lado. Antes de terminar os créditos principais, as luzes do cinema foram acesas, eu ousei olhar para o lado e vi que ele fitava a tela sem reação, como se estivesse interessado no nome dos assistentes de cenografia que passavam. Deu tudo errado, pensei. Toquei seu braço levemente e lhe falei que ele não precisava comentar nada naquele momento, mas, então, com uma voz embargada, ele me disse, pausadamente: "Fernando, eu me sinto tão feliz hoje, ao terminar de ver este filme, como quando acabei de escrever "O Ensaio sobre a Cegueira'". Apenas agradeci e ficamos ali quietos. Dois marmanjos segurando as próprias lágrimas em silêncio. Ele passou a mão nos olhos, disfarçando a sua. Pensei no meu pai. Emoção sólida, dessas que se pode cortar em fatias com uma faca. Num impulso, beijei sua testa. Na conversa e no jantar que se seguiram, ele disse que não considera o filme um espelho de seu trabalho e que nem poderia ser assim, pois cada pessoa tem uma sensibilidade diferente. Disse ter gostado da experiência de ver algo que conhecia, mas que, ao mesmo tempo, não conhecia. Falou que o filme não era perfeito, mas que nunca havia assistido a um filme perfeito. Comentou algumas imagens que o emocionaram especialmente e disse ter achado o nosso Cão das Lágrimas muito doce; preferia que fosse mais agressivo. CríticasQuando lhe contei sobre as críticas favoráveis e contrárias ao filme em Cannes, incluindo a da Folha, ele imediatamente lembrou e recontou aquela historinha do velho que vem puxando um burro montado por uma criança. Um passante vê aquilo e acha absurdo a criança estar montada enquanto um velho caminha, então eles invertem a posição. Outro passante cruza com o grupo e reclama da situação: "Como um adulto deixa uma criança a pé enquanto vai confortavelmente montado?". Então, os dois montam no burro, mas alguém acha aquilo uma crueldade com um animal tão pequeno. Finalmente, resolvem ambos carregar o burro nas costas, até que outro passante observa como são estúpidos por carregar o animal. E, enfim, o velho decide voltar para a primeira situação e parar de dar importância ao que dizem. "É isso que faço sempre", concluiu o escritor. Acabo de deixar José Saramago e sua mulher no Ministério da Cultura de Portugal, onde está sendo exibida uma retrospectiva de seu trabalho e sua vida. Houve uma pequena coletiva de imprensa ali, depois de visitarmos juntos a exposição. Meu filminho de menos de duas horas me pareceu muito insignificante ao ser colocado ao lado daquela obra de uma vida inteira.
FERNANDO MEIRELLES é o diretor de "Ensaio sobre a Cegueira", "Cidade de Deus" (2002) e "O Jardineiro Fiel" (2005), entre outros
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
Integração do bom senso
Por: Ciro Gomes
Publicado na Folha de São paulo em 20/09/05.
No Nordeste setentrional, a disponibilidade de água é menos da metade do que a Organização das Nações Unidas estabelece como mínima para a sustentabilidade da vida humana. Segundo a ONU, a vida é minimamente sustentável quando a disponibilidade hídrica é de 1.500 m3 por habitante/ano. Por causa disso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sensatamente, decidiu viabilizar a execução de um projeto que há décadas tem sido só uma promessa -o Projeto São Francisco.
Para tanto, reviu propostas de governos anteriores, que previam a captação de até 300 m3/s, uma insensatez, e incluiu na nova concepção a revitalização do rio, hoje na centralidade do planejamento do governo e no seu PPA. O Projeto São Francisco não é de transposição, mas de integração de sua bacia com as bacias dos rios intermitentes do Nordeste setentrional. Seu claro objetivo é oferecer segurança hídrica a 12 milhões de pessoas que vivem nas pequenas, médias e grandes cidades dos Estados de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará.Do ponto de vista da engenharia, o empreendimento é de fácil execução -dois canais a céu aberto revestidos de concreto, alguns túneis, algumas lagoas de retenção, algumas tomadas de água e estações elevatórias. Quando estiver em operação, captará, à jusante da barragem de Sobradinho, 26 m3/s, ou seja, 1,4% da vazão mínima que chega ao mar. Quando, e somente quando, Sobradinho estiver vertendo, o volume captado será ampliado para até 127 m3/ s. Nesses vertimentos, a vazão do rio chega a picos de até 15 mil m3/s, como aconteceu em 2004 -todo esse excedente vai adoçar o oceano. A água captada será transferida para açudes estratégicos, dos quais, por uma rede de adutoras já construídas ou em construção pelos Estados receptores, chegará às cidades.Em maio do ano passado, o presidente Lula baixou decreto considerando de utilidade pública, para efeito de desapropriação por interesse social, 2,5 km de terras nas duas margens dos eixos norte e leste do projeto. Isso quer dizer que, desde a data da publicação do decreto, estão proibidas a venda e a compra dessas terras, que serão utilizadas para projetos de assentamento do Programa de Reforma Agrária e para a agricultura familiar. Os menos favorecidos serão os mais beneficiados.Outra inovação do Projeto São Francisco é sua sinergia hídrica. No Nordeste, grande parte da água dos açudes se perde ou pela evaporação, nos anos secos, ou pelo vertimento, nos anos chuvosos. Essa perda deixará de existir, e a água dos açudes será aproveitada permanentemente em diferentes usos. Os reservatórios não precisarão mais permanecer cheios na expectativa de que o próximo ano será de seca. Quando eles forem recarregados pela água das chuvas, as bombas do projeto serão desligadas, sendo religadas nos anos secos.Para impedir conflito de interesses, para assegurar o fiel cumprimento dos limites da outorga de uso da água e para garantir a plena eficiência do seu sistema de geração de energia elétrica, será, por decisão do presidente Lula, uma subsidiária da própria Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a ser criada com essa exclusiva finalidade, a responsável pela operação do projeto São Francisco.A revitalização do São Francisco, consenso oco até o início deste governo, começou, e seu foco é o saneamento básico e a recomposição das matas ciliares. Estão em execução ou em fase de contratação projetos de tratamento de esgotos beneficiando mais de duas dezenas de cidades que hoje os despejam, "in natura", na calha do rio. Os primeiros canteiros de mudas para a reposição de matas ciliares estão produzindo.O que o São Francisco doará para o semi-árido setentrional é apenas 1,4% da vazão mínima que ele hoje joga no mar. É quase nada, se comparado aos mais de 60% que o rio Piracicaba manda para o abastecimento da cidade de São Paulo; aos cerca de 60% que o rio Paraíba do Sul desvia para o abastecimento do Rio de Janeiro; aos 50% que o rio Tajo doa à Espanha antes de entrar, com o nome de Tejo, em Portugal, onde deságua no oceano Atlântico.O Projeto São Francisco é um empreendimento economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Para blindá-lo contra a mínima suspeição, solicitei, por determinação do presidente Lula, ao Tribunal de Contas da União a análise e o acompanhamento técnico, especializado, de todo o seu processo licitatório. As recomendações do TCU foram acolhidas e incluídas no edital.O projeto foi aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, licenciado pelo Ibama e dispõe de outorga da ANA. Sua concepção atual, fruto também da parte bem intencionada das críticas que recebeu, mudará a vida de 12 milhões de nordestinos, como regra pobres, sem prejudicar um único brasileiro. É também a experiência de integração mais segura entre todas as observadas no mundo por duas razões: o ínfimo volume captado (apenas 1,4%) e o ponto de captação, situado num trecho onde o rio é totalmente regularizado, entre as barragens da Chesf.
Ciro Gomes, 47, advogado, filiado ao PSB, é ministro da Integração Nacional. Foi prefeito de Fortaleza (1988-90), governador do Ceará (1991-94) e ministro da Fazenda (governo Itamar).
Publicado na Folha de São paulo em 20/09/05.
No Nordeste setentrional, a disponibilidade de água é menos da metade do que a Organização das Nações Unidas estabelece como mínima para a sustentabilidade da vida humana. Segundo a ONU, a vida é minimamente sustentável quando a disponibilidade hídrica é de 1.500 m3 por habitante/ano. Por causa disso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sensatamente, decidiu viabilizar a execução de um projeto que há décadas tem sido só uma promessa -o Projeto São Francisco.
Para tanto, reviu propostas de governos anteriores, que previam a captação de até 300 m3/s, uma insensatez, e incluiu na nova concepção a revitalização do rio, hoje na centralidade do planejamento do governo e no seu PPA. O Projeto São Francisco não é de transposição, mas de integração de sua bacia com as bacias dos rios intermitentes do Nordeste setentrional. Seu claro objetivo é oferecer segurança hídrica a 12 milhões de pessoas que vivem nas pequenas, médias e grandes cidades dos Estados de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará.Do ponto de vista da engenharia, o empreendimento é de fácil execução -dois canais a céu aberto revestidos de concreto, alguns túneis, algumas lagoas de retenção, algumas tomadas de água e estações elevatórias. Quando estiver em operação, captará, à jusante da barragem de Sobradinho, 26 m3/s, ou seja, 1,4% da vazão mínima que chega ao mar. Quando, e somente quando, Sobradinho estiver vertendo, o volume captado será ampliado para até 127 m3/ s. Nesses vertimentos, a vazão do rio chega a picos de até 15 mil m3/s, como aconteceu em 2004 -todo esse excedente vai adoçar o oceano. A água captada será transferida para açudes estratégicos, dos quais, por uma rede de adutoras já construídas ou em construção pelos Estados receptores, chegará às cidades.Em maio do ano passado, o presidente Lula baixou decreto considerando de utilidade pública, para efeito de desapropriação por interesse social, 2,5 km de terras nas duas margens dos eixos norte e leste do projeto. Isso quer dizer que, desde a data da publicação do decreto, estão proibidas a venda e a compra dessas terras, que serão utilizadas para projetos de assentamento do Programa de Reforma Agrária e para a agricultura familiar. Os menos favorecidos serão os mais beneficiados.Outra inovação do Projeto São Francisco é sua sinergia hídrica. No Nordeste, grande parte da água dos açudes se perde ou pela evaporação, nos anos secos, ou pelo vertimento, nos anos chuvosos. Essa perda deixará de existir, e a água dos açudes será aproveitada permanentemente em diferentes usos. Os reservatórios não precisarão mais permanecer cheios na expectativa de que o próximo ano será de seca. Quando eles forem recarregados pela água das chuvas, as bombas do projeto serão desligadas, sendo religadas nos anos secos.Para impedir conflito de interesses, para assegurar o fiel cumprimento dos limites da outorga de uso da água e para garantir a plena eficiência do seu sistema de geração de energia elétrica, será, por decisão do presidente Lula, uma subsidiária da própria Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a ser criada com essa exclusiva finalidade, a responsável pela operação do projeto São Francisco.A revitalização do São Francisco, consenso oco até o início deste governo, começou, e seu foco é o saneamento básico e a recomposição das matas ciliares. Estão em execução ou em fase de contratação projetos de tratamento de esgotos beneficiando mais de duas dezenas de cidades que hoje os despejam, "in natura", na calha do rio. Os primeiros canteiros de mudas para a reposição de matas ciliares estão produzindo.O que o São Francisco doará para o semi-árido setentrional é apenas 1,4% da vazão mínima que ele hoje joga no mar. É quase nada, se comparado aos mais de 60% que o rio Piracicaba manda para o abastecimento da cidade de São Paulo; aos cerca de 60% que o rio Paraíba do Sul desvia para o abastecimento do Rio de Janeiro; aos 50% que o rio Tajo doa à Espanha antes de entrar, com o nome de Tejo, em Portugal, onde deságua no oceano Atlântico.O Projeto São Francisco é um empreendimento economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Para blindá-lo contra a mínima suspeição, solicitei, por determinação do presidente Lula, ao Tribunal de Contas da União a análise e o acompanhamento técnico, especializado, de todo o seu processo licitatório. As recomendações do TCU foram acolhidas e incluídas no edital.O projeto foi aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, licenciado pelo Ibama e dispõe de outorga da ANA. Sua concepção atual, fruto também da parte bem intencionada das críticas que recebeu, mudará a vida de 12 milhões de nordestinos, como regra pobres, sem prejudicar um único brasileiro. É também a experiência de integração mais segura entre todas as observadas no mundo por duas razões: o ínfimo volume captado (apenas 1,4%) e o ponto de captação, situado num trecho onde o rio é totalmente regularizado, entre as barragens da Chesf.
Ciro Gomes, 47, advogado, filiado ao PSB, é ministro da Integração Nacional. Foi prefeito de Fortaleza (1988-90), governador do Ceará (1991-94) e ministro da Fazenda (governo Itamar).
Vida para todos: por isso fiz a greve de fome
Por: D. Luiz Flávio Cappio
Publicado na Folha de São paulo em 10/10/05.
Foi em favor da vida que fiquei 11 dias em jejum e oração na tão querida capelinha de São Sebastião, em Cabrobó (PE). Motivou-me o compromisso, baseado no Evangelho, que tenho com os pobres, os do rio São Francisco em primeiro lugar, porque me são mais próximos, há mais de 30 anos, por opção de franciscano, sacerdote e bispo desde 1997. Compromisso com a vida do próprio rio São Francisco, tão degradado."Rio vivo, povo vivo. Rio morto, povo morto", gritamos milhares de vezes na peregrinação da nascente à foz do São Francisco, entre outubro de 1993 e outubro de 1994. Vida ameaçada pelo atual projeto de transposição. Mas meu compromisso é também com a vida de toda a população do semi-árido, principalmente a dos mais pobres, enganados com tal projeto.Era essa minha intenção, bastante clara na declaração "que todos tenham vida", que fiz depois de longo debate, no acordo que me levou a suspender o jejum e que celebrei com o ministro Jaques Wagner, em nome e com o assentimento do presidente Lula: "permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável, baseado na convivência com todo o semi-árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres. (...) que, através desse amplo debate, cheguemos a soluções que promovam a união e a concórdia para o povo brasileiro, especialmente para os irmãos e irmãs do semi-árido".Portanto não basta dizer "não" à transposição. Não basta só a revitalização do rio. É preciso um plano de desenvolvimento verdadeiramente sustentável, que beneficie toda a população do semi-árido, tanto os que estão próximos do rio como os que estão longe dele. Um bom plano exige que se pense o semi-árido em toda sua extensão, do norte de Minas ao Ceará, do agreste pernambucano ao Maranhão, com toda sua diversidade geográfica, social e ambiental. São aproximadamente um milhão de km2 e 30 milhões de pessoas.Os mais pobres estão nas cidades, mas formam quase toda população rural, espalhada por todo o território. São os que quase não têm terra, bebem águas podres de barreiros e de açudes, não têm a mínima infra-estrutura para enfrentar o clima do semi-árido e estariam fora do projeto de transposição. Pobres que estão não muito distantes do próprio rio São Francisco. Estes devem ser prioritários para o investimento público no semi-árido. Portanto é não só uma questão técnica mas ética.A transposição se colocou como um "fantasma" que não permite uma visão ampla do semi-árido, pois absorve mentes, energias e recursos, como se abrangesse o todo e fosse a salvação para todos. Ela abrangeria apenas 5% do semi-árido brasileiro e beneficiaria 0,23% da população do Nordeste, segundo críticos.Será, na verdade, mais problema para a população do campo e da cidade, uma vez que elevará o custo da água disponível e estabelecerá o mercado da água. Não vai redimir o Nordeste, como apregoam seus promotores. Tenta-se justificar, equivocadamente, um Nordeste setentrional separado do todo.Pensando o semi-árido como um todo, poderemos conferir exatamente qual poderia ser ou não a utilidade e a necessidade de uma obra de tamanho gasto público, para um país endividado como o nosso, e de tanto risco social e ambiental.É preciso pensar também o rio. Cortado por barragens, desmatado por carvoarias, poluído por esgotos e agrotóxicos, assoreado em toda a sua extensão, o São Francisco pede alento, um pouco de paz e um pouco de sossego para recuperar a vitalidade. Pede investimento. E suspensão dos projetos degradantes. Não há verdadeira revitalização se continuar a degradação dos solos, da vegetação e das águas da bacia, como nos cerrados do oeste baiano.É preciso respeitar também sua população, que suporta o ônus de todos os projetos impostos à grande bacia. Aqui também mora gente que merece consideração e respeito.Busquemos um plano que una novamente a nação nordestina. A transposição nos divide. A revitalização do São Francisco e do semi-árido nos une.Quando iniciei o jejum, declarei que, "quando a razão se extingue, a loucura é o caminho". Fico feliz que meu gesto, suas razões e sua "loucura" tenham sido compreendidos e apoiados por tanta gente. Agradeço sinceramente. Tenho rezado por todos. Não me canso de louvar a Deus por tanta graça recebida."Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância" (João, 10, 10).Fiz dessas palavras centrais do Evangelho meu lema de bispo. Só quis ser fiel a ela, com a radicalidade que a questão exigia. E voltarei ao jejum e a oração, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo não for cumprido. E sei que não estarei sozinho.
Dom frei Luiz Flávio Cappio, 59, é bispo diocesano da cidade de Barra (BA) e autor do livro "Rio São Francisco, uma caminhada entre vida e morte" (editora Vozes, 1995).
Publicado na Folha de São paulo em 10/10/05.
Foi em favor da vida que fiquei 11 dias em jejum e oração na tão querida capelinha de São Sebastião, em Cabrobó (PE). Motivou-me o compromisso, baseado no Evangelho, que tenho com os pobres, os do rio São Francisco em primeiro lugar, porque me são mais próximos, há mais de 30 anos, por opção de franciscano, sacerdote e bispo desde 1997. Compromisso com a vida do próprio rio São Francisco, tão degradado."Rio vivo, povo vivo. Rio morto, povo morto", gritamos milhares de vezes na peregrinação da nascente à foz do São Francisco, entre outubro de 1993 e outubro de 1994. Vida ameaçada pelo atual projeto de transposição. Mas meu compromisso é também com a vida de toda a população do semi-árido, principalmente a dos mais pobres, enganados com tal projeto.Era essa minha intenção, bastante clara na declaração "que todos tenham vida", que fiz depois de longo debate, no acordo que me levou a suspender o jejum e que celebrei com o ministro Jaques Wagner, em nome e com o assentimento do presidente Lula: "permitir uma ampla discussão, participativa, verdadeira e transparente para que se chegue a um plano de desenvolvimento sustentável, baseado na convivência com todo o semi-árido, para o bem de sua população, priorizando os mais pobres. (...) que, através desse amplo debate, cheguemos a soluções que promovam a união e a concórdia para o povo brasileiro, especialmente para os irmãos e irmãs do semi-árido".Portanto não basta dizer "não" à transposição. Não basta só a revitalização do rio. É preciso um plano de desenvolvimento verdadeiramente sustentável, que beneficie toda a população do semi-árido, tanto os que estão próximos do rio como os que estão longe dele. Um bom plano exige que se pense o semi-árido em toda sua extensão, do norte de Minas ao Ceará, do agreste pernambucano ao Maranhão, com toda sua diversidade geográfica, social e ambiental. São aproximadamente um milhão de km2 e 30 milhões de pessoas.Os mais pobres estão nas cidades, mas formam quase toda população rural, espalhada por todo o território. São os que quase não têm terra, bebem águas podres de barreiros e de açudes, não têm a mínima infra-estrutura para enfrentar o clima do semi-árido e estariam fora do projeto de transposição. Pobres que estão não muito distantes do próprio rio São Francisco. Estes devem ser prioritários para o investimento público no semi-árido. Portanto é não só uma questão técnica mas ética.A transposição se colocou como um "fantasma" que não permite uma visão ampla do semi-árido, pois absorve mentes, energias e recursos, como se abrangesse o todo e fosse a salvação para todos. Ela abrangeria apenas 5% do semi-árido brasileiro e beneficiaria 0,23% da população do Nordeste, segundo críticos.Será, na verdade, mais problema para a população do campo e da cidade, uma vez que elevará o custo da água disponível e estabelecerá o mercado da água. Não vai redimir o Nordeste, como apregoam seus promotores. Tenta-se justificar, equivocadamente, um Nordeste setentrional separado do todo.Pensando o semi-árido como um todo, poderemos conferir exatamente qual poderia ser ou não a utilidade e a necessidade de uma obra de tamanho gasto público, para um país endividado como o nosso, e de tanto risco social e ambiental.É preciso pensar também o rio. Cortado por barragens, desmatado por carvoarias, poluído por esgotos e agrotóxicos, assoreado em toda a sua extensão, o São Francisco pede alento, um pouco de paz e um pouco de sossego para recuperar a vitalidade. Pede investimento. E suspensão dos projetos degradantes. Não há verdadeira revitalização se continuar a degradação dos solos, da vegetação e das águas da bacia, como nos cerrados do oeste baiano.É preciso respeitar também sua população, que suporta o ônus de todos os projetos impostos à grande bacia. Aqui também mora gente que merece consideração e respeito.Busquemos um plano que una novamente a nação nordestina. A transposição nos divide. A revitalização do São Francisco e do semi-árido nos une.Quando iniciei o jejum, declarei que, "quando a razão se extingue, a loucura é o caminho". Fico feliz que meu gesto, suas razões e sua "loucura" tenham sido compreendidos e apoiados por tanta gente. Agradeço sinceramente. Tenho rezado por todos. Não me canso de louvar a Deus por tanta graça recebida."Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância" (João, 10, 10).Fiz dessas palavras centrais do Evangelho meu lema de bispo. Só quis ser fiel a ela, com a radicalidade que a questão exigia. E voltarei ao jejum e a oração, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo não for cumprido. E sei que não estarei sozinho.
Dom frei Luiz Flávio Cappio, 59, é bispo diocesano da cidade de Barra (BA) e autor do livro "Rio São Francisco, uma caminhada entre vida e morte" (editora Vozes, 1995).
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