quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Integração do bom senso

Por: Ciro Gomes
Publicado na Folha de São paulo em 20/09/05.

No Nordeste setentrional, a disponibilidade de água é menos da metade do que a Organização das Nações Unidas estabelece como mínima para a sustentabilidade da vida humana. Segundo a ONU, a vida é minimamente sustentável quando a disponibilidade hídrica é de 1.500 m3 por habitante/ano. Por causa disso, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sensatamente, decidiu viabilizar a execução de um projeto que há décadas tem sido só uma promessa -o Projeto São Francisco.
Para tanto, reviu propostas de governos anteriores, que previam a captação de até 300 m3/s, uma insensatez, e incluiu na nova concepção a revitalização do rio, hoje na centralidade do planejamento do governo e no seu PPA. O Projeto São Francisco não é de transposição, mas de integração de sua bacia com as bacias dos rios intermitentes do Nordeste setentrional. Seu claro objetivo é oferecer segurança hídrica a 12 milhões de pessoas que vivem nas pequenas, médias e grandes cidades dos Estados de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará.Do ponto de vista da engenharia, o empreendimento é de fácil execução -dois canais a céu aberto revestidos de concreto, alguns túneis, algumas lagoas de retenção, algumas tomadas de água e estações elevatórias. Quando estiver em operação, captará, à jusante da barragem de Sobradinho, 26 m3/s, ou seja, 1,4% da vazão mínima que chega ao mar. Quando, e somente quando, Sobradinho estiver vertendo, o volume captado será ampliado para até 127 m3/ s. Nesses vertimentos, a vazão do rio chega a picos de até 15 mil m3/s, como aconteceu em 2004 -todo esse excedente vai adoçar o oceano. A água captada será transferida para açudes estratégicos, dos quais, por uma rede de adutoras já construídas ou em construção pelos Estados receptores, chegará às cidades.Em maio do ano passado, o presidente Lula baixou decreto considerando de utilidade pública, para efeito de desapropriação por interesse social, 2,5 km de terras nas duas margens dos eixos norte e leste do projeto. Isso quer dizer que, desde a data da publicação do decreto, estão proibidas a venda e a compra dessas terras, que serão utilizadas para projetos de assentamento do Programa de Reforma Agrária e para a agricultura familiar. Os menos favorecidos serão os mais beneficiados.Outra inovação do Projeto São Francisco é sua sinergia hídrica. No Nordeste, grande parte da água dos açudes se perde ou pela evaporação, nos anos secos, ou pelo vertimento, nos anos chuvosos. Essa perda deixará de existir, e a água dos açudes será aproveitada permanentemente em diferentes usos. Os reservatórios não precisarão mais permanecer cheios na expectativa de que o próximo ano será de seca. Quando eles forem recarregados pela água das chuvas, as bombas do projeto serão desligadas, sendo religadas nos anos secos.Para impedir conflito de interesses, para assegurar o fiel cumprimento dos limites da outorga de uso da água e para garantir a plena eficiência do seu sistema de geração de energia elétrica, será, por decisão do presidente Lula, uma subsidiária da própria Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a ser criada com essa exclusiva finalidade, a responsável pela operação do projeto São Francisco.A revitalização do São Francisco, consenso oco até o início deste governo, começou, e seu foco é o saneamento básico e a recomposição das matas ciliares. Estão em execução ou em fase de contratação projetos de tratamento de esgotos beneficiando mais de duas dezenas de cidades que hoje os despejam, "in natura", na calha do rio. Os primeiros canteiros de mudas para a reposição de matas ciliares estão produzindo.O que o São Francisco doará para o semi-árido setentrional é apenas 1,4% da vazão mínima que ele hoje joga no mar. É quase nada, se comparado aos mais de 60% que o rio Piracicaba manda para o abastecimento da cidade de São Paulo; aos cerca de 60% que o rio Paraíba do Sul desvia para o abastecimento do Rio de Janeiro; aos 50% que o rio Tajo doa à Espanha antes de entrar, com o nome de Tejo, em Portugal, onde deságua no oceano Atlântico.O Projeto São Francisco é um empreendimento economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Para blindá-lo contra a mínima suspeição, solicitei, por determinação do presidente Lula, ao Tribunal de Contas da União a análise e o acompanhamento técnico, especializado, de todo o seu processo licitatório. As recomendações do TCU foram acolhidas e incluídas no edital.O projeto foi aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos, licenciado pelo Ibama e dispõe de outorga da ANA. Sua concepção atual, fruto também da parte bem intencionada das críticas que recebeu, mudará a vida de 12 milhões de nordestinos, como regra pobres, sem prejudicar um único brasileiro. É também a experiência de integração mais segura entre todas as observadas no mundo por duas razões: o ínfimo volume captado (apenas 1,4%) e o ponto de captação, situado num trecho onde o rio é totalmente regularizado, entre as barragens da Chesf.


Ciro Gomes, 47, advogado, filiado ao PSB, é ministro da Integração Nacional. Foi prefeito de Fortaleza (1988-90), governador do Ceará (1991-94) e ministro da Fazenda (governo Itamar).

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